Minhas posses materiais são poucas e eu deixo tudo
para você ... uma coleira mastigada em uma das extremidades, faltando dois
botões, uma desajeitada cama de cachorro e uma vasilha de água que está lascada
na borda.
Deixo para você a metade de uma bola de borracha, uma boneca rasgada
que você vai encontrar debaixo da geladeira, um ratinho de borracha sem apito
que está debaixo do fogão e uma porção de ossos enterrados no canteiro de rosas
e sob o assoalho de minha cama.
Além disso eu deixo para você memórias, que aliás são
muitas. Deixo para você memórias de dois enormes e meigos olhos marrons, a
memória de um rabinho curto e espetado, de um nariz molhado e de choradeiras
atrás da porta. Deixo para você uma mancha no tapete da sala de estar, junto à
janela, quando nas tardes de inverno eu enrolava feito uma bolinha para pegar
um pouco de sol. Deixo para você um tapete esfarrapado em frente à sua cadeira
preferida, o qual nunca foi consertado com o tipo de linha certa. Isso é
verdade, eu o mastiguei todinho quando tinha 5 meses de idade, lembra-se?
Também deixo para para você as memórias da primeira
surra que levei e também todo o meu esquecimento ... Deixo para você um
esconderijo que eu fiz no jardim, debaixo dos arbustos, perto da varanda da
frente, onde eu costumava me esconder do sol nos dias de verão, Ele deve estar
cheio de folhas agora e talvez você tenha dificuldades em encontrá-lo. Sinto
muito!
Deixo também, e só para você, os barulhos que eu fazia
ao fugir correndo sobre as folhas de abril, quando nós vagabundeávamos pelo
bosque. Deixo ainda a lembrança de momentos pelas manhãs, quando saíamos juntos
pela margem do riacho e você me dava aqueles biscoitos de baunilha. Recordo-me
das suas risadas porque eu não consegui alcançar aquele coelho impertinente...
Deixo-lhe como herança minha devoção, minha simpatia,
meu apoio quando as coisas não andavam bem, meus latidos quando você levantava
a voz aborrecido ... e minha frustração por você ter ralhado comigo todas as
vezes que eu colocava o nariz debaixo da cauda.
Eu nunca fui à igreja, nunca escutei um sermão, e sem
ter dito sequer uma palavra em minha vida, deixo para você lições de paciência,
de tolerância, de amor e compreensão. Sua vida tem sido mais rica porque eu
vivi.
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